A PIPOCA
A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a
cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as
panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a
algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi
sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis,
picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas,
churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma
meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como
ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca
escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo -
porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha
capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a
pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A
pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples
molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas.
Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E
algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar
como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de
pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma
inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um
extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu
pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma
panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido
religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que
simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...).
Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida
e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com
a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé baiano: que a pipoca é a comida
sagrada do candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu
agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas
espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é
que, sob o ponto de vista do tamanho, os milhos da pipoca não podem competir
com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve
alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o
fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo
fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar,
saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que
acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores
brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se
transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa,
brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É
muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a
transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação
porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O
milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois
do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para
comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra
coisa - voltar a ser crianças!
Mas a
transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa
pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a
gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não
passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice
e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é
o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos
lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um
amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser
fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas
ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o
sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a
pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente,
pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em
si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a
transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela
é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação
acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente,
que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do
casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e transforma-te!" - dizia Goethe.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e transforma-te!" - dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás
com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive,
acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser
forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a
estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da Unicamp,
especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da
pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no
mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas
"piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar.
Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é
muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se
recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que
o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida
perde-la-á." A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que
não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão
se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém.
Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não
servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
(Correio Popular, 29/08/1999)
Rubem Alves
· Rubem Alves é um psicanalista, educador,
teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando temas
religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.
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